É interessante como a paz de uns é sempre tomada pela ganância de outros. A história deste mundo, fragmentada por eras sem nome, guarda incontáveis testemunhos de povos que viram seus lares ruírem antes mesmo que o tempo tivesse sido ordenado.
Entre as pedras quebradas e séculos de silêncio, encontrou-se um documento antigo, esculpido às pressas por mãos que tremiam mais por dor do que medo.
Pertence a um período anterior ao Calendário Aldúrico, quando as estações eram marcadas apenas pela luz de Anar e o silêncio de Arat.
Seu autor, ao que tudo indica, foi um anão do clã Gothir — alguém que registrou não apenas o colapso de seu povo, mas também a última voz que ecoou nos túneis da montanha antes que as chamas consumissem o reino.
O fragmento a seguir é um dos poucos vestígios autênticos desse dia de escuridão — uma confissão interrompida, marcada pela pressa, pela fuligem e pela urgência de não permitir que a memória de Kalendil morresse junto de suas pedras.
Aos que sobreviverem ao que resta de Kalendil,
Eu, Etrath Gothir, filho de Borun Gothir, registro os acontecimentos da última luz do nosso lar, para que não se perca o que vi, nem o que fomos. Este relato foi escrito nas cavernas inferiores, sob a orientação direta do príncipe Hadrum Durfalsson, herdeiro do trono de Kalendil.
Quando a montanha se tornou instável e o ar das forjas voltara contra nós, encontrava-me em repouso, conversando baixinho com minha esposa. Ciclos antes da ruína, lembro-me apenas de seu toque, e de como ela me pediu para descansar.
Pouco depois, o primeiro tremor veio.
As pedras dos corredores superiores começaram a ceder, como se tivessem sido golpeadas por mãos gigantes. O som ecoou por toda a cidadela subterrânea.
Corri às forjas menores, onde encontrei Brumlak, meu companheiro de linhas de solda, esmagado sob vigas que se partiram com violência. Vi Lorin Pedrarrasa perder a perna quando o piso se abriu sob seus pés. Consegui puxá-lo, apesar da fumaça espessa e do calor que subia do chão como um fôlego do inferno.
As criaturas — bestas nunca antes vistas naquela região — avançavam com risos que mais pareciam rosnados. Seus olhos refletiam as chamas que consumiam nossas casas. O caos tomou os túneis, e muitos irmãos sucumbiram antes mesmo de compreenderem o que nos atingia.
Foi então que encontramos o príncipe Hadrum, ferido no braço, mas firme como a raiz da montanha.
Ele ordenou o recuo imediato.
Sob sua liderança, reunimos quantos puderam ser salvos:
três aprendizes da forja, duas famílias dos salões superiores, e os feridos que consegui carregar. Seguimos pelos túneis antigos de Rokh-Mir, construídos antes mesmo da união dos primeiros clãs. O príncipe manteve-nos unidos, guiando o grupo mesmo quando a fumaça tornava impossível enxergar mais do que o brilho pálido das tochas.
Durante a retirada, ouvi — ainda que distante — a voz que estremeceu a pedra como trovão:
“Kalendil caiu.”
Não sei se o rei Durfal viveu para ouvir tais palavras.
Ao alcançarmos a caverna de contenção, o príncipe Hadrum fechou a porta-guia com o martelo do pai e ordenou que aguardássemos seu retorno. O tremor seguinte apagou metade das tochas. Muitos choraram.
Este relatório foi registrado enquanto ainda havia respiro e luz suficiente. Não sei quantas passagens subterrâneas permanecem seguras, nem quantos de nós ainda—
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o restante do documento está queimado e partido; as linhas finais tornaram-se ilegíveis.



